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Crime organizado transforma WhatsApp em mercado ilegal no Rio, apontam investigações

Traficantes usam grupos abertamente para venda de armas, drogas e planejamento de crimes, sem distinção entre facções rivais

Investigações obtidas pelo jonral Extra revelam como o crime organizado no Rio de Janeiro passou a usar ferramentas digitais de comunicação para estruturar e expandir atividades ilícitas. Grupos no WhatsApp funcionam como verdadeiros mercados clandestinos, nos quais criminosos negociam armas, munições e drogas, planejam roubos e administram pontos de venda de entorpecentes de forma aberta, sem receio de vigilância.

Segundo os investigadores, a dinâmica observada nesses grupos se assemelha à de plataformas legais de comércio eletrônico, com anúncios frequentes, descrições de produtos, valores explícitos e até regras internas para organizar as transações. A tecnologia, longe de ser apenas um meio de comunicação, tornou-se uma ferramenta central de gestão do crime.

Redes paralelas e articulação entre facções

Uma das investigações analisadas envolve a atuação de traficantes do Espírito Santo no Rio de Janeiro. A partir da quebra de sigilo telefônico de um criminoso local, a polícia capixaba identificou uma rede paralela de negociações que operava de forma integrada na capital fluminense, conectando diferentes grupos e facções.

Os agentes tiveram acesso a pelo menos seis grupos distintos: Desapegando do Complexo, Tropa do Grau, Joga pra Rolo RJ 2.0, Joga pra Rolo 2.0, Bom Negócio da Maré e Mercado Negro Zona Norte. O relatório aponta que os produtos anunciados nesses espaços eram revendidos a integrantes de diferentes organizações criminosas, como Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos.

Em um dos grupos, um administrador estabeleceu regras para as negociações, priorizando membros da própria facção, mas deixando claro que as vendas não estavam restritas a um único bando.

“Mano, sou adm e sou da Nova Holanda. Tem gente aqui que não leva facção. Aos que seguem, só comprar dentro do quadrado. Aos que não, forte abraço e seguir em paz. Segurança de todos, seja CV, TCP, ADA”, escreveu o administrador do grupo Joga pra Rolo 2.0, em mensagem enviada no dia 30 de setembro aos 128 integrantes.

Para os investigadores, a orientação demonstra como as transações são pensadas para ocorrer de forma contínua, independentemente das rivalidades históricas entre facções, fortalecendo o crime organizado como um todo.

“O conteúdo das mensagens trocadas no grupo Joga pra Rolo 2.0 revela que a principal finalidade do espaço é a compra e venda de armas, drogas e outros materiais ilícitos, viabilizando o tráfico de drogas, homicídios e ações contra as forças de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, afirma um trecho da investigação.

Gestão online de armas e drogas

Conversas analisadas pela polícia mostram a naturalidade com que os produtos ilegais são oferecidos. Um dos integrantes, identificado como “Deus é Fidel”, anuncia armas, munições e equipamentos bélicos em mensagem enviada no dia 23 de janeiro deste ano: “Acessórios e peças para fuzil e pistola, melhor preço aqui”.

Entre os itens disponíveis estavam bandoleiras, coldres, rádios comunicadores, coletes balísticos, roupas camufladas, lunetas, granadas e vestimentas táticas. Também havia oferta de munições de calibres 9 mm, .40, .380, .45 e 7,62. Os anúncios eram acompanhados de emojis de coração e carinhas felizes, o que, segundo os investigadores, evidencia a habitualidade e a banalização dessas negociações dentro dos grupos.

A venda de drogas seguia a mesma lógica. Mensagens com fotos e descrições eram publicadas ao longo do dia. “Maconha top, preço justo, vem”, escreveu um usuário em 30 de outubro do ano passado. Na época, o quilo da droga era oferecido por cerca de R$ 1.200 e a mensagem alcançou mais de 1.400 integrantes. Segundo a polícia, o grupo acumulava, no fim de 2024, mais de 50 mil mensagens, a maioria relacionada ao abastecimento de drogas e armamentos.

A partir de um dos vendedores, identificado como “Marrento”, os investigadores mapearam o fluxo das negociações. A divulgação ocorria no grupo, mas a venda era fechada em conversas privadas. A entrega era combinada previamente e a retirada acontecia na favela da Nova Holanda, no Complexo da Maré.

Chefes foragidos e controle à distância

Outra investigação conduzida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro revelou como lideranças do tráfico seguem atuando mesmo quando estão foragidas. A análise de um celular atribuído a Carlos da Costa Neves, o Gardenal, apontado como um dos chefes do Comando Vermelho, mostrou que ele continuava gerenciando bocas de fumo e monitorando a movimentação policial à distância.

Gardenal foi alvo de uma megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão, em outubro, mas não foi localizado. O conteúdo extraído do aparelho indica a existência de uma rede de olheiros espalhados pela cidade, responsável por acompanhar ações da polícia, do Exército e do Ministério Público.

Grupos como FML Juramento e CP J2 eram usados para monitorar o Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho. Já as comunidades do Guaporé e do Quitungo, na Zona Norte, eram acompanhadas por meio dos grupos Diretoria QTG GP e Família Quitungo & Guaporé.

Crimes comuns também migraram para o ambiente digital

O uso do WhatsApp para o planejamento de crimes não se limita ao tráfico. Uma investigação da 14ª DP descobriu que uma quadrilha especializada em roubos de joias e relógios de luxo organizava os assaltos por meio do aplicativo.

Fabio Aguiar Correa, Luis Henrique da Silva, conhecido como Magrão, e Bruna França Nunes foram condenados pelo roubo a um pedestre na Rua Professor Arthur Ramos, no Leblon, em 2024. Segundo as investigações, o trio monitorou a vítima até abordá-la e roubar um relógio Rolex e um anel de ouro avaliados em R$ 64 mil.

Após a prisão, Bruna confessou que os crimes eram planejados em grupos no WhatsApp e que, depois das ações, as conversas eram apagadas “para não restar nenhuma pista”. Ela tinha a função de identificar e seguir as vítimas, enquanto os homens realizavam o roubo. Um quarto integrante ficava responsável por vender os itens na região da Uruguaiana, no Centro.

Privacidade, criptografia e investigação

O avanço do uso de aplicativos criptografados pelo crime reacende o debate sobre privacidade e acesso a dados por autoridades. Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, afirma ao Extra que o tema exige uma discussão profunda sobre como garantir investigações eficazes sem comprometer direitos.

“Tudo mudou com essas novas tecnologias, e era de se esperar que com a criminalidade não seria diferente. Há duas vertentes: uma é o uso dessas novas formas para uma comunicação instantânea e rápida, com a gestão do tempo eficiente para esses negócios criminais. Mas há também um outro tipo de apropriação que muda a natureza da atividade criminal, como o delivery de drogas e armas, a venda pela internet e até mesmo alguns tipos de estelionatos que passaram a ocorrer pelo mundo virtual”, explica.

Filipe Medon, professor de Direito Civil da FGV Direito Rio e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da instituição, destaca que a criptografia impede métodos tradicionais de interceptação.

“É um caso de bola dividida. Há o argumento de que as empresas precisam criar um mecanismo que permita uma quebra de sigilo eventual para a repressão a um crime. Outra linha, sobre a privacidade, diz que se você abre para um, pode abrir para outros”, diz Medon. E completa: “Nesse caso, com o tempo, as pessoas poderiam perder a confiança de se comunicar com a certeza de que não há ninguém do outro lado da linha lendo as conversas e as impedindo de exercerem sua liberdade.”

A questão é discutida atualmente no Supremo Tribunal Federal, que avalia se empresas de tecnologia podem ser obrigadas a quebrar a criptografia e fornecer dados às autoridades. Procurada, a Meta não respondeu aos contatos da reportagem.

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